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*reprodução TV Globo |
É muito valioso quando a arte
imita a vida e serve de sensibilização e fonte de informação a assuntos tão
delicados, como a violência sexual infantil. A novela
global O outro lado do paraíso mostrou recentemente o caso de Laura (Bella Piero), abusada pelo padrasto Vinicius (Flávio Tolezani) aos oito anos de idade. Na trama, a menina não
fala sobre o abuso; a mãe, apesar de ver machucados na filha, não desconfia do
acontecido; e a empregada doméstica opta por guardar segredo por medo de perder
o emprego e pelos possíveis desdobramentos do
caso.
Essa é uma história muito comum,
apesar de carregarmos no imaginário o abusador como um homem desconhecido que
vem e sequestra a criança. Mas, a maioria dos crimes sexuais, são praticados por
pessoas próximas a vítima, em grande parte por membros da própria família.
De acordo com o Disque 100, uma a
cada cinco crianças sofreram algum tipo de abuso sexual no país, e desses somente
um a cada dez casos são relatados. Justamente pelo abusador ser um
adulto próximo da vítima, e esse adulto envolver a criança num jogo de poder
psicológico, é muito difícil pra criança elaborar o que ela está vivenciando, epressar toda a confusão que traz dentro de si e acreditar que será levada a
sério dando um fim positivo a história.
Receber o relato da vítima como
fantasias infantis, confusão e até achar que a criança é ruim, promíscua e
parte contribuinte da relação abusiva ainda é frequente. É necessário compreender que aceitar um membro
da família como um criminoso que é capaz de abusar de uma criança desestrutura
toda a ‘instituição familiar: a história daquelas pessoas, os papéis que
assumem e muitas vezes a condição econômica de uma casa. Esse é um crime que
apesar de ter a criança como vítima principal, afeta de forma violenta toda uma
organização. Afinal, normalmente o abusador é uma pessoa que ocupa um papel de
autoridade moral, afetiva e financeira na família, o que favorece o silêncio e a
impunidade.
A ideia de que a criança
contribui para que a situação de abuso aconteça, ou ainda, que não deve ser
ouvida por fantasiar e mentir sobre o abuso deve ser combatida. É sempre
responsabilidade do adulto o ato abusivo,
todos os seres humanos apresentam uma expressão sexual, a sexualidade é
inerente a vida, cabe ao adulto colocar os limites físicos e orientar o
desenvolvimento psicossexual da criança e não o contrário. Sabe-se também que
raramente a criança mente. Segundo o guia de identificação e enfrentamento do
Ministério Público, de 2015, apenas 6% dos casos são fictícios e quando ocorrem
normalmente são com crianças maiores que já avaliam e objetivam vantagem.
O mais assertivo a se fazer
diante do relato de uma criança é ouvi-la de forma acolhedora e deixar evidente
que você acredita nela, que ela não é culpada por qualquer coisa que tenha acontecido.
Em seguida, procurar a ajuda de um profissional capacitado (psicólogo, médico,
assistente social) e denunciar o caso ao Disque 100 ou ao Conselho Tutelar, ao Ministério
Público da sua cidade ou a delegacia. Lembrando que a investigação e/ou
confirmação do abuso é responsabilidade dos órgãos e profissionais competentes.
Dessa forma a denúncia ou notificação deve ser feita também em caso de suspeita
do crime.
Uma mudança de postura diante do
abuso e da maneira como tratamos os abusadores socialmente também é urgente ao
combate desse tipo de violência.
Nos falta uma educação sexual
infantil adequada que ajude a criança a identificar, a reconhecer e a expressar
seus sentimentos e o que lhes acontece no dia a dia. Assim como uma difusão de informações aos
adultos responsáveis que os auxiliem no trato dessa questão.
O guia de referência da
Childhood de 2009 orienta que as crianças entre 18 meses e três anos, sejam
ensinadas acerca dos nome das partes do corpo; entre três e cinco anos, sejam
orientadas sobre as partes íntimas; após os cinco anos, saibam bem sobre sua
segurança pessoal e sobre as principais situações de risco; e depois dos oito
anos, seja iniciada a discussão sobre os conceitos e as regras de conduta
sexual que são aceitas pela família e orientadas com informações básicas sobre
reprodução humana.
Outro aspecto importante a ser
levantado diante da repercussão do episódio na novela é que nesse caso
apresentado pelo enredo, a mãe não é conivente ou culpada pelo o que aconteceu
com a filha, abusadores não possuem características específicas que os
identifiquem, são pessoas comuns que não levantam suspeitas. E não podemos
culpabilizar a mulher por refazer a sua vida amorosa, assim como colocá-la em
uma condição de solidão por terem filhos.
Identificar a ocorrência de um
abuso também não é uma tarefa fácil. De acordo com o guia de identificação e
enfrentamento do Ministério Público, 2015, somente em 30% dos casos há
evidências físicas e são poucas as vezes que existem um relato da vítima. O que
pode-se fazer é observar a criança para perceber mudanças físicas e
comportamentais que apontem um possível caso de abuso. Ainda sim, podem haver
casos sem manifestações de sintomas por parte da vítima.
Alguns sintomas comuns
apresentados são:
- - Exploração
sexual excessiva.
- - Conhecimento
e curiosidade sexual fora do esperado.
- - DST (doenças
sexualmente transmissíveis).
- - Gravidez.
- - Lesões,
hematomas e irritações no corpo, principalmente na região genital e garganta.
- - Ansiedade e
medo diversos e excessivos.
- - Mudança
brusca e inexplicável de comportamento.
-
I- solamento,
depressão ou agressividade.
- - Baixo
rendimento no aprendizado ou frequência escolar.
- - Regressão a
comportamentos infantis (voltar a fazer xixi e cocô na calça, chupar dedo...).
- - Distúrbios
alimentares e no sono.
- - Doenças de
fundo emocional.
- - Uso de
álcool, drogas e prática de delitos.
É muito importante também
compreender que a pedofilia é um quadro de doença mental prevista como
transtorno sexual sofrido por alguém que sente o desejo sexual por crianças e
pré adolescentes. Porém, nem todo pedófilo chegará a abusar sexualmente de
alguma criança, o crime só existe se acontece o ato de abusar. Sabemos que a maioria dos abusadores não
possuem nenhuma patologia, ou seja não são pedófilos, são pessoas que se aproveitam da cultura que
facilita a violência contra as crianças e os adolescentes. Sendo assim, acusar
o abusador de pedofilia é tirar a responsabilidade pelo ato de violência e
amenizar a situação.
Mas afinal o que é considerado
abuso sexual, não é mesmo? Bom, abuso sexual é a exploração do corpo e da
sexualidade da criança ou adolescente, feita por um adulto para obter a própria
satisfação sexual, podendo existir contato físico ou não. A exposição da criança a conteúdo
pornográfico, ao ato sexual, a situações obscenas; o encorajamento e/ou
estímulo para a prática de atividades sexuais com adultos ou com outras
crianças; o assédio, propostas, conversas e telefonemas licenciosos afim de
estimular a sexualidade ou chocar a criança; a exposição dos órgãos genitais,
se masturbar no campo de visão da criança ou ainda observá-la em momentos
íntimos afim de obter prazer; produzir e expor imagens e vídeos erotizados da
criança; seduzir, acariciar as partes íntimas dela ou praticar sexo oral, anal
ou vaginal tudo isso se caracteriza como abuso e não deve ser ignorado.
Na novela, a personagem esquece
que foi abusada e só se lembra depois de adulta, quando decide procurar ajuda para
resolver dificuldades sexuais que desenvolveu. Esse também é um fato possível,
apesar de não corriqueiro. Dificilmente as vítimas esquecem que foram abusadas
e quanto mais frequentes os abusos, maiores os impactos emocionais, físicos,
morais e sexuais na vida da vítima.
Todavia,
algumas pessoas não se lembram que foram abusadas na infância, mas isso não
quer dizer que por isso passaram ilesas pela violência. Mesmo sem se lembrar do abuso as vítimas
sofrem efeitos nocivos da situação abusiva, como: dificuldades de manter relações afetivas, sexuais e amorosas saudáveis,
o envolvimento em prostituição, o uso de álcool ou drogas, dificuldade de
inserção na vida social, sentimento de inferioridade, culpa, entre outros.
Recordar-se de uma situação abusiva
vivenciada pode acontecer em diversas ocasiões, mas é importante reforçar que o
acompanhamento psicológico da vítima deve ser feito por um profissional
capacitado para isso. A recuperação
diante dos efeitos gerados pelo trauma depende da capacidade da vítima de
resignificar situações, de se reorganizar e de se fortalecer. Sabemos que não é
tão fácil, mas é possível.
Catarina Maruaia. - arte terapeuta, educadora e mentora do projeto Se Toque- arte e sexualidade
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